domingo, 30 de novembro de 2008

Responder-te

perguntas-me
por que não escrevo
o mar

explico-te que
no seu ir e vir
constante
de tons e cores
ele é já
um poema
Luís Ene

Só tu

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade

sábado, 29 de novembro de 2008

Guarda-me

e de novo entre nós aquele choro de quem
não teve tempo de preparar a despedida
com as palavras certas
porque as palavras certas estavam todas
em histórias erradas
que outros escreveram em lugares nublados
que nem vale a pena tentar recompor

Alice Vieira

Vôo ou Quando As Palavras Nos Beijam

Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam.
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas, as palavras voam.
Voam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.
Oh! Alto e baixo em círculos e rectas acima de nós, em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.
Cecília Meireles

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Sofrer-te

Quem nunca sofreu por amor nunca aprenderá o que é amar.
Amar é o terror de perder o outro, é o medo do silêncio e do quarto deserto, de tudo o que se pensa sem poder falar, do que se murmura a sós sem ter a quem dizer em voz alta.
É preciso sentir esse terror para saber o que é amar.
E, quando tudo enfim desaba, quando o outro partiu e deixou atrás de si o silêncio e o quarto deserto, por entre os escombros e a humilhação de uma felicidade desfeita, resta o orgulho de saber que se amou.

Miguel Sousa Tavares

Código (Con)Sentido

Não despertes o que não podes calar.

José Tolentino Mendonça

domingo, 23 de novembro de 2008

Ironia

O diabo é um título das nossas esperanças. Quanto mais elas são ardentes, mais nelas arde o diabo, sem se consumir, como é próprio do seu espírito. Temei os que muito amam; eles são destinados a cometer os maiores erros. Muito ama o diabo; é esse o seu maior castigo e o que o carrega de cadeias para a eternidade.

Agustina Bessa-Luís

sábado, 22 de novembro de 2008

Alter-Ego

Devagar,
Hora a hora,
Dia a dia,
Como se o tempo fosse um banho de acidez,
Vou vendo com mais nitidez
O negativo da fotografia.




E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto, em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade.




Dois homens num só rosto!
Uma espécie de Jano sobreposto,
Inocente,
Impotente,
E condenado
A este assombro de se ver forrado
Dum pano de negrura que desmente
A nua claridade do outro lado.

Miguel Torga

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Prazos

A caneta que escreve e a que prescreve
revezam-se harmoniosamente na mesma mão.

Miguel Torga

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Vem...

Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem, serenidade!
faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Raul de Carvalho

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Ao Sabor do (nosso) Tempo

As gotas de chuva caídas
beijavam as reentrâncias dos beirais
e os umbrais da casa,
escorrendo fios de prata
em eterna ampulheta.

Célia Lamounier de Araújo

Interdição

Pergunto o que é o segredo da vida, se é que a vida tem algum segredo. Pelo menos, quando se pergunta, é porque se sabe que nem tudo se pode saber.

Nuno Júdice

Permissão

Pode ser só o que está escrito
no que é escrito sem o ser;

E só se escrevo que está tudo dito
sei o que o poema quer dizer:

Ser escrito sem que tenha de o escrever,
dizendo só o que tive que dizer.

Nuno Júdice

domingo, 16 de novembro de 2008

O que te escrevo

Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
eu farei versos...e serei feliz...

E hei-de fazê-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei-de depois
relembrar o passado de nós dois...
esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás-de escutá-los sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás-de um dia mais tarde, revivê-los nas
lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los...com saudade em tua dor...
hás-de rever, chorando, o nosso amor,
hás-de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e
outros versos quiseres, teu pedido deixa
ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá novamente, então tu fores,
podes colher do chão todas as flores, pois
são os versos de amor que ainda te dou.

José Guilherme de Araújo Jorge

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Voo Nocturno

Agora já não vejo o sol
nem seu reflexo lunar

levo as asas nos bolsos
e o coração a planar

neste voo nocturno
nao sei onde vou aterrar

sinto as nuvens nos meus pulsos
e o leme sempre a consentir

sao sempre os mesmos ossos que eu insisto em partir
neste voo nocturno só quero mesmo resistir
neste voo nocturno sou mais leve do que o ar
neste voo nocturno nao sei onde vou acordar

em baixo há manchas no canal
mas eu nao as quero ver

poeira ou plano está frio
e as helices a ferver

o nariz do avião
só obedece a quem quiser

agora nao existe nada
o meu motor ou ralentim

vou revendo em surdina
tudo o que eu vivi

neste voo nocturno
a madrugada veem ai

neste voo nocturno sou mais leve do que o ar
neste voo nocturno nao sei onde vou acordar

Jorge Palma

sábado, 1 de novembro de 2008

Crepúsculo (ou A Hora Do Lobo)

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
e quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz livida, a palavra
despedida.


David Mourão-Ferreira

Pele

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

David Mourão Ferreira