quinta-feira, 28 de maio de 2009

Noite de Insónia (4:12 am)

saiu para a rua.
embrenhou-se na espessura da noite,
amou e traiu,
seduziu e deixou-se seduzir,
morreu um pouco todas as manhãs
e nunca mais regressou ao que tinha sido.

Al Berto

Noite de Insónia (4:09 am)

Nas grandes horas em que a insónia avulta
Como um novo universo doloroso,
E a mente é clara com um ser que insulta
O uso confuso com que o dia é ocioso,

Cismo, embebido em sombras de repouso
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta,
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Me farão nada, como frase estulta.

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.

Fernando Pessoa

Noite de Insónia (3:23 am)

umas vezes falavas-me dos rios
e densas cicatrizes
e o sangue
procedia

outras vezes velava-te uma lâmpada
de faias e de enigmas
e a sombra
repousava

outras vezes o barro
originava
uma erupção de insónia recidiva
no gume do incêndio onde jazias

nessas vezes a água do teu riso
abria nos meus pulsos uma rosa
e eu entontecia

Carlos Nogueira Fino

Noite de Insónia (2:59 am)

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais.E então, das duas uma : partem -se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.

No segundo caso, o homem que não dorme pensa:"o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim,deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo,esmagar o coração."

Carlos de Oliveira

Noite de Insónia (2:11 am)

As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.

É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder

Noite De Insónia (2:10 am)

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras,
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.
Álvaro de Campos

Noite De Insónia (1:40 am)

tento escrever um verso.
tenho vontade de sair por aí, vaguear pelas ruas, mas vou ficar aqui, fechado na casa sitiada pela noite, perdida algures onde a não posso sequer inventar.
meio deitado, imagino o mar ao fundo das ruas, os barcos como fantasmas adormecidos no areal, finjo que não posso mexer-me. escrevo ou desato a gritar, tanto faz

Al Berto

quarta-feira, 27 de maio de 2009

talvez

nunca tenha entendido a minha maneira
de amar ou
talvez nunca
tenha tido uma maneira de amar ou uma única
maneira de amar – talvez nunca
tenha sabido o amor de uma maneira – a forma
e a proporção
a geometria – mas estou certo que amei
sempre tarde demais ou num cedo incerto de
tanta impossibilidade de me encontrar amando
seja o que for
o amor.

Frederico Mira George

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Que estranho destino é o meu

que apenas me consente paixões ardentes e me faz esgotar em amores improváveis.
José Manuel Saraiva

Reticências (s)em Tempo


Sinto-me
como
se
tivesse
cegado
por
excesso
de olhar
o mundo.

Al Berto

Como Uma Dor

levanto-me e saio para a rua
caminho na chuva adocicada da manhã,
as pedras acendem-se por dentro,
reconhecem-me
uma voz líquida arrasta-se no interior dos meus passos,
ecoa pelos recantos ainda vivos do teu corpo

Al Berto

sábado, 16 de maio de 2009

Quando Nós...

Era o silêncio sobre a terra.
O mundo estava preparado.
No seu lugar, cada objecto esperava o início.
O sol esperava.
O mundo estava preparado e suspenso.
Nós, dentro dos homens, depois das nuvens, sabíamos como tudo ia acontecer.
O nosso olhar passava sobre os campos, rente à terra, atravessava os ramos das árvores e o mês de Julho.
No silêncio, distinguíamos as palavras que, durante um momento futuro, se iriam erguer como uma construção de cinza.
Nos objectos, distinguíamos os gestos que, a partir de um momento futuro, iriam alterar a sua ordem.
Era o silêncio.
A terra esperava passos.
O sol esperava olhares para iluminar.
O tempo, Julho, existia na distância entre os objectos suspensos.
Nós assistíamos à espera do mundo.
A terra sabia.
O sol sabia.
O tempo sabia.
Nós sabíamos.
Os homens não sabiam.
Ele e ela não sabiam.


José Luís Peixoto

sábado, 9 de maio de 2009

... e havia uma força cega

No poema:
Era um verbo de sangue para o silêncio arder.

Daniel Faria

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Desvario

Passar-te estas palavras assentes
na promessa de nada comunicarem.
Aceitas tão pesado desafio? Voz
sem uma pessoa dentro: numa cidade
grande de tantas heranças, tão poucos
amigos, que mais havia a esperar?
Apenas a derradeira ousadia
do corpo, a pausa de pensar um outro
desejo. Não é preciso inventar
a distância, cada um para seu lado
a ir ter com as coisas que conhecemos
há tanto tempo. Dou contigo na única
atenção, ficaria aqui muitas horas
só a olhar a calma que pões em tudo.
E tudo foi breve, as semanas
já correm sobre o nosso esquecimento.
Dizer quem és vai ficar sempre
adiado, procuro o doído desejo
da repetição.

Helder Moura Pereira

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Aqui

Nem os dias longos me separam da tua imagem.
... Então, desejo
o silêncio para que dele possas renascer...

Nuno Júdice

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A Invenção Do Amor ou A Pandemia

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios
de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza
de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia
iminente a captura
A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos *

Daniel Filipe
__________________________________________________________ *Afinal a fuga fomos nós...
E.S.

Apenas porque...

Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
é justo que assim seja. Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar- me um lugar qualquer mais adiante,
despir-te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.
António Franco Alexandre