segunda-feira, 29 de junho de 2009

Vive o instante que passa.


Vive-o intensamente até à última
gota de sangue. É um instante
banal, nada há nele que o distinga
de mil outros instantes vividos.
E no entanto ele é o único por ser
irrepetível e isso o distingue
de qualquer outro. Porque nunca
mais ele será o mesmo nem tu que o
estás vivendo. Absorve-o todo
em ti, impregna-te dele e que ele
não seja pois em vão no dar-se-te
todo a ti. Olha o sol difícil
entre as nuvens, respira à
profundidade de ti, ouve o vento.
Escuta as vozes longínquas de
crianças, o ruído de um motor que
passa na estrada, o silêncio que
isso envolve e que fica.

E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és.

Vergílio Ferreira

sábado, 20 de junho de 2009

Profunda Maresia

dançamos à roda dum mastro,
saia em papel de seda bordada com búzios...
uma quadra flutua pela noite de nossos cabelos
rodopias,
e os teus amores são relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas breves,
junco molhado e o mar enche-se novamente de pássaros,
embarcações semelhantes a beijos que nos percorrem de alegria

Al Berto

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Despeito

Hoje a obsessão foi mais forte.
Escrever-te.
E um dia perguntei-te se tinhas guardado estas cartas.
Tu olhaste-me com o teu sorriso breve e repreensivo.

Rasguei-as,
naturalmente, disseste,
e porque havia de guardá-las?

Vergílio Ferreira

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Disseram-me

que não se pode quebrar o coração a alguém que já o tem partido.
E eu pensei
Pode.
Podemos sempre partir os bocadinhos do coração em bocadinhos ainda mais pequenos, amachucar ainda mais o que nos resta, como se nos tirassem o último sopro de vida.
Patrícia Reis

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Fila De Espera

Espera-se para tudo, somos feitos não de carne,
De paciência, se calhar já nascemos com um papelinho na mão.
Retire aqui o seu bilhete e aguarde a sua vez.
Aguardo a minha vez. Desde que me conheço que aguardo a minha vez.

António Lobo Antunes

ilegível

O teu corpo, luz sobre a cama.
A escuridão chegará de um momento para o outro e tu perdes-te, minha amada, sobre os lençóis num sono que enche a noite. Enroscada como um animal perigoso que ao menor toque atacaria, a luz dos olhos fechada sob as pálpebras docemente descidas. Ainda se vê, no escuro, o seu fulgor. Não sei onde está aquela que eu persigo, por onde se passeia, erguida e nítida, quais os desejos de que se alimenta e os prazeres de que se constrói. Não sei que paisagens a acolhem, que língua humana fala. O teu corpo despido, estendido a meu lado, preste o ataque.
Tão frágil que me impede de lhe tocar.
Um imenso desejo.
A noite toma-te sem fazer perguntas.

Pedro Paixão

Sublinhado

Tenho um mau presságio.
Só escreve quem não está a bem com a vida, quem está desde sempre descentrado e busca o irremediável equilíbrio nas palavras.

Pedro Paixão

terça-feira, 9 de junho de 2009

Mais Um (Dia)

Os dias longos, as noites no meio do mar.
Espero o porto de chegada, as virtudes restituídas, o espírito enfim reconciliado com o mundo.
E desembarco, há uma qualquer experiência surpreendente, caminho para o conhecimento.
Consigo agarrar essa meada ainda irreconhecível: a maneira como tudo se enreda em tudo.
Desabituei-me dos milagres.
Sabe-se como é: quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações.
Trata-se de mais um dia em que me vou chatear, aturar os meus semelhantes, a filha-de-putice teológico-emocional de um Deus que, ainda por cima, não existe.
Posso especular sobre a revolução, evidentemente.
Que revolução?
A revolução, claro.
Pois é: a minha revolução não dá um passo.

Herberto Helder

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Os Meus Quartos Em Metades De Outros

Esta será, talvez, a forma mais prática e mais simples de nos conseguirmos prolongar, fazendo com que a nossa imagem permaneça viva na cabeça dos outros.
Perdemos, nisto, uma parte de nós próprios; sabemos que nos falta qualquer coisa, e que essa qualquer coisa que não conseguimos definir, e que é sem dúvida um pedaço da nossa alma, foi retalhada do nosso ser por esse olhar que nos fixou, e levou consigo a imagem em que a nossa essência encontrara a sua mais completa expressão, deixando-nos um vazio que não conseguimos definir, porque para isso precisaríamos das palavras de quem nos roubou a nós próprios.

Nuno Júdice

Capítulos

Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão.
Era o momento de recuar.
Mas eu não recuo.
Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída.
E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!...
Há na minha vida um bem lamentável episódio que só se explica assim.
Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável.
Mas não era, não era.
É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim.
Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado.
Eu sou daqueles que vão até ao fim.
Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa.
Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo.
E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim.
Mas ninguém as compreende.
Ou tão raros...

Mário de Sá-Carneiro, in "Cartas a Fernando Pessoa

sábado, 6 de junho de 2009

As Nossas Respostas

Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.
Nuno Júdice

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A minha táctica

é olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és

A minha táctica
é falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

A minha táctica
é ficar na tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti

A minha táctica
é ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois
não haja cortinas
nem abismos

A minha estratégia
é em outras palavras
mais profunda e mais
simples

A minha estratégia
é que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.

Mario Benedetti

terça-feira, 2 de junho de 2009

A nossa existência

não é mais do que um
curto-circuito de luz
entre duas eterniddades
de obscuridade.

Vladimir Nabokov