terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Ausência...

Estou mudo porque todas as palavras te escutam.

Vasco Gato

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Falavam-me De Amor

Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.

Natália Correia

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Religião (ou Reflexão)

As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.

Fernando Pessoa




sábado, 20 de dezembro de 2008

Em Caminhos

Eu, quando sou eu,
É apenas por distracção.
E apenas para ser ninguém
me sobeja vocação.

Mia Couto

De Caminhos

O homem que acha que os segredos do mundo são para sempre insondáveis vive no mistério e no medo.
A superstição arrasta-o para o abismo.
A chuva acabará por esfarelar os feitos da sua existência.
Mas do homem que atribui a si mesmo a tarefa de isolar da trama do cosmos o fio da ordem podemos dizer que, com essa simples decisão, tomou as rédeas do mundo nas suas mãos e só dessa forma conseguirá ditar os termos do seu próprio destino.

Cormac McCarthy

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Há dias que são como espaços preparados para que tudo doa.

Roberto Juarroz

Sabes

vesti-te de palavras
com o perfume da poesia
só para te despir na leitura

José António Gonçalves

Simplesmente Amar (te)

Nao importa o que se ama.
Importa a matéria desse amor.
As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor.
As palavras são um principio - nem sequer o principio.
Porque no amor os principios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma historia que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida.
Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor.
O sujo, a luz, o espero, o macio, a falha, a persistencia.

Inês Pedrosa

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Atrás Do Tempo

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco

Desvios

As pessoas não têm consciência de que quando se empenham inteiramente em servir o sistema e fazem de peça útil, comprometem talvez o melhor de si próprias.
Não chegam a desfrutar, do cume a que poderiam ter chegado, a dimensão para que foram feitas.

António Alçada Baptista

domingo, 14 de dezembro de 2008

Prisão

Estou a ouvir-me gritar dentro de mim,

mas já não sei o caminho

da minha vontade

para a minha garganta.

Fernando Pessoa

Lembra-te

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny

sábado, 13 de dezembro de 2008

Mesa Dos Sonhos

Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
de novos sonhos a vida.
Alexandre O'Neill

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Notas De_Vida(s)

Procuro que a minha vida vá tendo a musicalidade duma constante pergunta e nunca o monolitismo paralisante duma conclusão.
Estou absolutamente certo de que nem eu nem ninguém anda com a verdade no bolso, mas estou certo também de que dela irremediavelmente nos aproximamos pelas coisas que descobrimos e pelas resistências que vencemos.

António Alçada Baptista

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Chama-me

Abro-te as portas querendo
a tua luz
numa sede de ti que não se acalma
Não me negues a água
que mata a minha sede
Desejo o teu incêndio
queimando a minha alma

Maria Teresa Horta

Poema

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

(in)Tempo(ral)Idade

Aqui nesta praia onde

Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Impasse

Tão longe e aqui mesmo
te sinto,
tão longo o abraço
que não dou

tão gélido o toque
das palavras
de encontro ao peito
aberto, indefeso…

tão estreito o caminho,
tão fundo o abismo
diante dos olhos exaustos
à procura de abrigo…

Ângela Santos

domingo, 30 de novembro de 2008

Responder-te

perguntas-me
por que não escrevo
o mar

explico-te que
no seu ir e vir
constante
de tons e cores
ele é já
um poema
Luís Ene

Só tu

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade

sábado, 29 de novembro de 2008

Guarda-me

e de novo entre nós aquele choro de quem
não teve tempo de preparar a despedida
com as palavras certas
porque as palavras certas estavam todas
em histórias erradas
que outros escreveram em lugares nublados
que nem vale a pena tentar recompor

Alice Vieira

Vôo ou Quando As Palavras Nos Beijam

Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam.
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas, as palavras voam.
Voam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.
Oh! Alto e baixo em círculos e rectas acima de nós, em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.
Cecília Meireles

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Sofrer-te

Quem nunca sofreu por amor nunca aprenderá o que é amar.
Amar é o terror de perder o outro, é o medo do silêncio e do quarto deserto, de tudo o que se pensa sem poder falar, do que se murmura a sós sem ter a quem dizer em voz alta.
É preciso sentir esse terror para saber o que é amar.
E, quando tudo enfim desaba, quando o outro partiu e deixou atrás de si o silêncio e o quarto deserto, por entre os escombros e a humilhação de uma felicidade desfeita, resta o orgulho de saber que se amou.

Miguel Sousa Tavares

Código (Con)Sentido

Não despertes o que não podes calar.

José Tolentino Mendonça

domingo, 23 de novembro de 2008

Ironia

O diabo é um título das nossas esperanças. Quanto mais elas são ardentes, mais nelas arde o diabo, sem se consumir, como é próprio do seu espírito. Temei os que muito amam; eles são destinados a cometer os maiores erros. Muito ama o diabo; é esse o seu maior castigo e o que o carrega de cadeias para a eternidade.

Agustina Bessa-Luís

sábado, 22 de novembro de 2008

Alter-Ego

Devagar,
Hora a hora,
Dia a dia,
Como se o tempo fosse um banho de acidez,
Vou vendo com mais nitidez
O negativo da fotografia.




E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto, em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade.




Dois homens num só rosto!
Uma espécie de Jano sobreposto,
Inocente,
Impotente,
E condenado
A este assombro de se ver forrado
Dum pano de negrura que desmente
A nua claridade do outro lado.

Miguel Torga

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Prazos

A caneta que escreve e a que prescreve
revezam-se harmoniosamente na mesma mão.

Miguel Torga

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Vem...

Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem, serenidade!
faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Raul de Carvalho

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Ao Sabor do (nosso) Tempo

As gotas de chuva caídas
beijavam as reentrâncias dos beirais
e os umbrais da casa,
escorrendo fios de prata
em eterna ampulheta.

Célia Lamounier de Araújo

Interdição

Pergunto o que é o segredo da vida, se é que a vida tem algum segredo. Pelo menos, quando se pergunta, é porque se sabe que nem tudo se pode saber.

Nuno Júdice

Permissão

Pode ser só o que está escrito
no que é escrito sem o ser;

E só se escrevo que está tudo dito
sei o que o poema quer dizer:

Ser escrito sem que tenha de o escrever,
dizendo só o que tive que dizer.

Nuno Júdice

domingo, 16 de novembro de 2008

O que te escrevo

Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
eu farei versos...e serei feliz...

E hei-de fazê-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei-de depois
relembrar o passado de nós dois...
esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás-de escutá-los sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás-de um dia mais tarde, revivê-los nas
lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los...com saudade em tua dor...
hás-de rever, chorando, o nosso amor,
hás-de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e
outros versos quiseres, teu pedido deixa
ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá novamente, então tu fores,
podes colher do chão todas as flores, pois
são os versos de amor que ainda te dou.

José Guilherme de Araújo Jorge

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Voo Nocturno

Agora já não vejo o sol
nem seu reflexo lunar

levo as asas nos bolsos
e o coração a planar

neste voo nocturno
nao sei onde vou aterrar

sinto as nuvens nos meus pulsos
e o leme sempre a consentir

sao sempre os mesmos ossos que eu insisto em partir
neste voo nocturno só quero mesmo resistir
neste voo nocturno sou mais leve do que o ar
neste voo nocturno nao sei onde vou acordar

em baixo há manchas no canal
mas eu nao as quero ver

poeira ou plano está frio
e as helices a ferver

o nariz do avião
só obedece a quem quiser

agora nao existe nada
o meu motor ou ralentim

vou revendo em surdina
tudo o que eu vivi

neste voo nocturno
a madrugada veem ai

neste voo nocturno sou mais leve do que o ar
neste voo nocturno nao sei onde vou acordar

Jorge Palma

sábado, 1 de novembro de 2008

Crepúsculo (ou A Hora Do Lobo)

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
e quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz livida, a palavra
despedida.


David Mourão-Ferreira

Pele

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

David Mourão Ferreira

sábado, 25 de outubro de 2008

Lembranças **

Lembro-me de como batia
No meu peito, o coração enquanto te esperava
Lembro-me das mãos suadas,
Do primeiro olhar trocado,
Do beijo terno á chegada

Lembro-me do calor das tuas mãos nas minhas,
De como falámos, de mim, de ti
Sem nos darmos conta do tempo;
Lembro-me dos primeiros beijos
Ainda receosos do que estava por vir

Lembro-me depois como nos abraçámos
Como nos despimos na ânsia e na pressa
De nos encontrarmos no branco da cama
pele na pele, toque electrizante;
Do teu cheiro, do teu sabor
Magicamente já conhecidos.

Lembro-me como sentimos
Que aquela não era a nossa primeira vez,
Como antecipámos cada toque, cada gesto
Um do outro;
Como me senti, como te senti em mim
Sabendo que ali era o meu lugar
Lembrando-me de nunca te esquecer

Lembranças vivas na minha memória
Como tu
Como nós!!

Zazé
__________________________________________________________
** Para sempre só nossas
ES

Beijo

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mas beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.

Jorge de Sena

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Simples

A mim,
basta-me o espanto da flor que murcha
quando,
no mesmo ramo,
outra flor expande as pétalas ao sol.

Al Berto

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Espaço Disponivel

Deito-me no
teu corpo
como se fosses
a minha última cama
no meu quarto de hóspede dos dias.
Deito-me e
velo
a criança lúcida
que dorme reclinada
na orla marítima do silêncio.
Ali onde o
tempo
se anula e renova
na substância palpável
dum gesto ou dum olhar
colhidos sobre a água
construo a minha casa,
habito o espaço inteiro
disponível para a vida,
necessário para a morte.

Albano Martins

Ouvir-te

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois factos existe um facto,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

Clarice Lispector

Ofício de Amar

Já não necessito de ti
Tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
Tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
De outras galáxias, e o remorso.....

.....um dia pressenti a música estelar das pedras
abandonei-me ao silencio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.

Al Berto

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Lembrar-te

Queria falar contigo
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Eugénio de Andrade

sábado, 11 de outubro de 2008

Sem Alcance

Como hei-de saber o que desejo,
Se tudo o que não tenho me apetece?...

Miguel Torga

Entre Mundos


Que afago virá
sossegar-me o coração
e que luz por entre as brumas
me fará, por fim, saber
o sentido inaudito
do que me ata aos dias.....

eu que nada sei
eu que acordei com o sopro
e me disse com o primeiro grito
eu que resisti ao mundo,
antes de o saber azul e bordado de fragas
e entranhado de lume

não sei o que virá acordar-me
do sossego se vier ...
e que caminho acharei depois de ter caminhado
por entre urzes e gritos e o desatino do mundo.

E depois o que virá? Sabê-lo de que me serve
se hoje é o tempo todo e isto que sou e sinto
o que devo sentir e ser.


Angela Santos

(Desas)Sossego

Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem outro ponto qualquer,
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todos as ruas...

Alvaro de Campos

Tudo. Tudo Sinto.

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Alvaro de Campos

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Recusa

Todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada.
Ficaram só os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
Os domingos e as noites que passámos a fazer planos não foram suficientes e foram demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
Sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora,não irei negar isso.
Não irei negar nunca que te amei.
Nem mesmo quando estiver deitado, nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder.

José Luís Peixoto

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Vida

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Eugénio de Andrade

sábado, 27 de setembro de 2008

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
.
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
.
O porvir...
Sim, o porvir...


Alvaro de Campos

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

De mim

O que a memória amou fica eterno.

Adélia Prado

De ti

Devolve-me a leveza
Da tão primeira nuvem que avistares.

Daniel Faria

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Nocturno

Conheço cada vez melhor aquilo que de mim se despede e não regressa, e aquilo que nasce algures onde já não estou.
Perdi o controle dos meus pensamentos, tudo se confunde num sem tempo onde a minha lucidez, a minha razão, são outras.
(...)
Não é possível roubar à vida um corpo nocturno.
É demasiado escuro, pesado, e mal se vê e pressente.
Só a luminosidade solar é capaz de o devorar, de o apagar.
Será por excesso de luz que deixarei de ser.
O meu corpo nocturno tem séculos de existência mas, mal desponta a madrugada, desgasta-se numa fracção de segundo.
Tudo vem ao chamamento.
Penso mar, e o mar enche-me a alma e as mãos.
Balbucio cal, e na pele do tempo cresce uma casa onde não viverei, ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos, e nela nos ferimos.

Al Berto

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

És

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando...
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses...
E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demónio que ruge e um deus que chora.

Olavo Bilac

Coração sem imagens

Deito fora as imagens,
Sem ti para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Raúl de Carvalho

domingo, 14 de setembro de 2008

O Meu Amor Existe

O meu amor tem lábios de silêncio
E mãos de bailarina
E voa como o vento
E abraça-me onde a solidão termina

O meu amor tem trinta mil cavalos
A galopar no peito
E um sorriso só dela
Que nasce quando a seu lado eu me deito

O meu amor ensinou-me a chegar
Sedento de ternura
Separou as minhas feridas
E pôs-me a salvo para além da loucura

O meu amor ensinou-me a partir
Nalguma noite triste
Mas antes, ensinou-me
A não esquecer que o meu amor existe

Jorge Palma


Eterno Retorno

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro.

Ruy Belo

sábado, 13 de setembro de 2008

Amor

Ao dizer que te amo é
como se as portas da vida se
abrissem, e uma luz nascida de dentro
do desejo de ti me trouxesse
até mim. Mas ao dizer
que te amo, são as portas
da noite que se fecham, e é
contigo que espero a última
madrugada, onde entre
mim e ti
nenhumas portas existam.

Nuno Judice

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Faltas-me

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência das águas
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.

Mia Couto

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Caos


Tão pouco do que pode acontecer acontece...
Salvador Dali

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Confluência

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.

Álvaro de Campos

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Crua derrota


De vez em quando a eternidade sai do teu interior e a contingência substitui-a com o seu pânico.
São os amigos e conhecidos que vão desaparecendo e deixam um vazio irrespirável.

Não é a sua 'falta' que falta, é o desmentido de que tu não morres.


Vergílio Ferreira

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Beber-te

Sei que morro de sede mesmo que não te afastes, sei que não há remédio... mas que valeu a pena...

David Mourão Ferreira

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Um nome

Vou guardar as tuas mäos na paixäo que tenho por ti,
mas näo te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber.
Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos
amarmo-nos.
Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui.
Pertencia a outra paixäo, e já a esqueci.
Dá-me tu um nome para eu poder ficar contigo...

Al Berto

Destruição

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Inglória

(...) quantas vezes aconteceu mostrarmo-nos como quem somos, e não valeu a pena, não estava lá ninguém para ver.
José Saramago

O nosso lugar

Entre nós, não havia distância poque eramos atravessados um pelo outro. Faziamos parte de um lugar infinito que era igual em cada um de nós. Não eramos fronteiras dentro desse lugar, porque esse lugar não tinha fronteiras. Esse lugar era infinito. Esse lugar era o amor nos nossos olhos.

José Luis Peixoto

Todo o tempo**

O tempo que passo procurando as palavras exactas do inexacto momento em que te ouvi pela primeira vez.
O tempo, infinito tempo, em que te abracei.
O tempo das memórias.
O tempo da tua voz.
O tempo, inacessível tempo, dos nossos beijos.

Inatingível tempo do Nós.

O tempo das memórias fingidamente esquecidas do futuro tempo sonhado.
O tempo das lágrimas, queridas lágrimas.
O tempo da incerteza.
O tempo do carinho.
O tempo do nada e da tristeza, na tua ausência.

Este tempo em que te digo:
- Fala-me, não pares de falar. Ouvindo-te tenho a certeza de que sou real, e de que também tu és, fora de mim, real.

Manuel António Pina


_____________________________________________________
**És parte de mim, longe de mim... fazes-me falta

ES

Não é Música

Não é música o que ouvimos.
Não é de água este brilho de prata.

Eu estou aqui sobre as pontes do rio.
Outros são os que espreitam pela bruma das margens.

Talvez me lembre:
tu vinhas devagar pelo lado das acácias.
Cingias cada árvore e as colunas, os braços de um
deus cruel, o saber dos templos.

Não é um salmo o que ouvimos.
Não é de harpas este lamento,
não é o ofício das mãos esculpindo um rosto,
não é a palavra de deus que ecoa nas escarpas.

Algures te ocultas e não deixas sinais.
Quem és tu
cujo perfil se desvanece, cuja doçura se perde nos
confins da tarde?

Eu estou aqui onde se unem as margens, onde escurecem
as sendas e as sombras,
onde correm as nuvens, as pedras, as águas.

Outros são os que te aguardam pelo lado das acácias.


José Agostinho Baptista

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Amo-te

Crucificaste-me a sentir,

levemente acidulada no peso das aspas que apertas na palavra.

A cada prego marcado anseio-me ao som que quero ouvir.




Apontas - peço - bates - quero - afundas - sossego.

Cravas-me o aguardo.

Avessas-me na busca,

levemente nauseada na quebra das aspas que sufocas na palavra.




Suspendes - caio - tocas - sorrio - agarras - digo.

Hesitas-me o olhar.

A cada aspa caída deslizo-me ao tom de me quereres amar.

C.G.**
_______________________________________________________
** Obrigado pela partilha das tuas palavras no meu espaço.
ES

domingo, 24 de agosto de 2008

Poesia

..............................................O passado servia-me de alimento. A memória dava me
o fogo de que eu precisava – mesmo que esse fogo ardesse
no lume brando da imaginação. As árvores, os pássaros,
os rios, eram imagens que não passavam da literatura,
como se fossem apenas as árvores do poema, os
pássaros de um canto melancólico, os rios por onde
corre o tempo da filosofia. Agora, ao lembrar me
de tudo isso, enquanto bebo devagar este copo de
solidão, não reconheço o cenário: como se um vento
tivesse varrido as árvores, um outono tivesse expulso
os pássaros, um inverno tivesse desviado os rios. O
que vejo, neste espaço em que entro pela porta que
me abriste, é mais simples do que tudo isso: tu, com
o rosto apoiado nas mãos, e os olhos que me trazem
todas as certezas do mundo. Guardo comigo, então,
a tua imagem. Vivo cada instante que me deixaste. E
no tempo que nos separa voltam a crescer árvores,
cantam outros pássaros, correm os rios do amor.


Nuno Júdice

Profano

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes porque já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.
Anna Akhmátova

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Sem palavras

É sabido que os comboios completos de pensamento atravessam instantaneamente as nossas cabeças, na forma de certos sentimentos, sem tradução para a linguagem humana, menos ainda para uma linguagem literária... porque muitos dos nossos sentimentos, quando traduzidos numa linguagem simples, parecem completamente sem sentido.
Essa é a razão pela qual eles nunca chegam a entrar no mundo, no entanto toda a gente os tem.
Fiodor Dostoievski

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Erros

Nada sobressai tanto, nem permanece tão firmemente fixo na memória, como algo em que tenhamos falhado.
Cícero

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Ela

Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só
Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.


Alberto Caeiro

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Essencial

Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente.
Bernardo Soares

Súplica **

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer,
Enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
Miguel Torga

__________________________________________________________
**Porque a vida custa a passar sem ti.
ES

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Truque Tóxico

Volto ao quarto de pensão, fumo até ao vómito
isto é : drogo-me.....

....abro a caixa de papelão, aparentemente cheia de sonhos
escolho um, fumo mais erva, nenhum sonho me serve,

abro a caixa dos pesadelos.....
o silencio ocupa-me e da caixa libertam-se corpos
cores violentas, olhares cúbicos, pássaros filiformes
cadeiras agressivas
limo as arestas fibrosas dos objectos
arrumo-os pelo quarto, de preferencia nos cantos
dou-lhes novos nomes, novas funções, suspiro extenuado
embora a sonolenta tarefa não tenha sido demorada

....outra caixa, azulada, abro-a
entro nela e fecho-a, o escuro solidifica-se na boca
tenho medo durante a noite
alguém se lembrou de atirar fora a caixa......

....luzes, umbigos obscurecidos pelas etiquetas
dos pequenos produtos de consumo, tóxicos
FRAGIL - MANTER ESTE LADO PARA CIMA
NÃO INCLINAR
TIME TO BUY ANOTHER PACKET

O quarto está completamente mobilado de corpos
explodem caixas, o sangue alastra
estampa-se nas paredes sujas de calendários e cromos
de pin-ups obscenas

....fendas de bolor no espelho
o reflexo do corpo arde como uma decalcomania
TIME TO BUY ANOTHER PACKET
todos dormem dentro de caixas, uma serpente flutua
falamos baixinho
não se ouvem mais barulhos de cidade
o sono e o cansaço subiram-me á boca

....movemo-nos lentamente para fora de nossos corpos
e devastamos, devastamos.....
Al Berto

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Nostalgia

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.



David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Recordar (e)ternamente

A precisão das memórias não é obrigatoriamente uma coisa boa. O coração é muito mais fiável, porque guarda, maioritariamente, as coisas que nos fazem bem; as más vai-as deixando cair, à medida que as expõe, seja à conversa dos amigos seja à dos amantes.
Possidónio Cachapa

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Ternos sentidos

Ó doce perspicácia dos sentidos!
Visão mais táctil que apressados dedos
sempre na treva tropeçando em medos
que só o olfacto os ouve definidos!

Audível sexo, corpos repetidos,
gosto salgado em curvas sem segredos
a que outras acres e secretas - ledos,
tranquilos, finos, ásperos rangidos -

se ligam, mancha a mancha, lentamente...
Perfume túrgido, macio, tépido,
sequioso de mão gélida e tremente...

Vago arrepio que se escoa lépido
por sobre os tensos corpos tão fingidos...
Ó doce perspicácia dos sentidos

Jorge de Sena

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Dom

O aborrecimento tira-nos tudo, até a coragem de nos matarmos.

Stendhal

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Farto

Eu tenho assim este ar calmo. Mas sempre precisei fazer um grande esforço para ser apenas normal. Mas agora até isso é demais.

Albert Camus

sexta-feira, 25 de julho de 2008

solidão

cresceu-me uma pérola no coração.
mas estou só,
muito só,
não tenho a quem a deixar

Al Berto

quinta-feira, 12 de junho de 2008

A força da auto-sugestão

A proclamação do nosso mérito é um exercício excelente para aumentar e mesmo para adquirir efectivamente esse mérito.

Eça de Queirós

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Poesias Inéditas

A novela inacabada,
Que o meu sonho completou,
Não era de rei ou fada
Mas era de quem não sou.

Para além do que dizia
Dizia eu quem não era...
A primavera floria
Sem que houvesse primavera.

Lenda do sonho que vivo,
Perdida por a salvar...
Mas quem me arrancou o livro
Que eu quis ter sem acabar?


Fernando Pessoa

segunda-feira, 19 de maio de 2008

As sem razões do amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Carlos Drummond de Andrade

domingo, 11 de maio de 2008

Eternos Sentidos

Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?
E Te Amando Sigo...até Onde? Onde a Fé na Fantasiosa Esperança Permitirá Crêr que a Vida É Contínua e Infinita E Terei Sempre às Mãos o Tempo da Eternidade.


Fernando Pessoa

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Não amar

Nunca amamos ninguém.
Amamos, tão-somente, a idéia que fazemos de alguém.
É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos.
Isso é verdade em toda a escala do amor.
No amor sexual buscamos um prazer nosso, dado por intermédio de um corpo estranho.
No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma idéia nossa.


Fernando Pessoa