segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dia_Ri_A_Mente

ando na vida à procura
de uma noite menos escura
que traga luar do céu
de uma noite menos fria
em que não sinta agonia
de um dia a mais que morreu

Camané

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Ana_Tu_Mia

teu corpo
dilui-se
nos ossos da página,
contamina
as cartilagens das sílabas
Al Berto

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Depoimento

Deponho
no processo do meu crime.
Sou testemunha
E réu
E vítima
E juiz
Juro

Que havia um muro,
E na face do muro uma palavra a giz.
MERDA! – lembro-me bem.
– Crianças......
– disse alguém que ia a passar.
Mas voltei novamente a soletar
O vocábulo indecente,
E de repente
Como quem adivinha,
Numa tristeza já de penitente
Vi que a letra era minha...

Miguel Torga

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

(A)mar(her)esias

Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.

Casimiro de Brito

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Mata-me

quero morrer
com uma overdose de beleza
Al Berto

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Quimera De Mim

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.
Maria Teresa Horta

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Só (Contigo)

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo,
e desisti.

Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos
a loucura de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.

Só por dentro de ti
a noite escuta o que me sai, sem voz,
do coração.

David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Preludio

Os espelhos ainda nos devolvem a candura do que somos,
mas
também anunciam a cinza que sepultara os corpos,
algures,
num esquecimento e
numa dor obscura de nós próprios.

Temos de aprender a subjugar o destino
à nossa vontade.
Ainda é possível mergulhar nos espelhos e
roubar-lhes os vestígios felizes de nossos rostos.

Ainda é possível apagar as dolorosas manchas da memória e
recuperarmos o rosto da alegria que nos pertenceu.

É esse o nosso rosto, mesmo que seja morto.

Regressa.
Regressa ao escorrer dos dedos enrolados no sexo,
ao riso matinal dos corpos saciados,
às nocturnas conversas das esplanadas,
aos jogos de sedução,
aos engates,
ao murmúrio das vozes,
à ofegante trepidação da manhã,
regressa... regressa.

Porque as palavras não te substituem e
estão cheias de pústulas no coração das sílabas.

Regressa e
oferece-te à preguiça triste de quem continua aqui,
vivo,
sorvendo a espiral da sua própria ausência.

Regressa, peço-te, mesmo antes de partires.

Regressa à voracidade do desejo, e
à incendiada paixão dos nocturnos tigres.

Al Berto

domingo, 26 de julho de 2009

De mim

Sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir.
vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável,
para que a morte nada encontre em mim quando vier.
Al Berto

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Ou Isto Ou Aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão ,
Quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e não guardo o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Cecília Meireles

sábado, 11 de julho de 2009

Asfixia

Não se sabe como acontece, nem quando.
Digo o desejo, que tudo arrasta, que tudo envolve num aperto que asfixia. A vontade de anular todo o espaço entre as coisas no ardor dos corpos, no misturar das línguas.
O sexo é o caos, o precipício para onde nos lançamos entrelaçados.
O desejo atinge a cabeça no centro do sexo. O seios aprumam-se ao menor toque suave dos dedos. A cabeça do sexo erguida, Raquel fica estátua, medusa petrificada onde só os olhos muito azuis brilham. As bocas abocanham o sexo escorregadio, agarram-se ás reentrâncias, á pele por debaixo de tudo.

Nada mais quero do mundo senão a tua flor coberta de orvalho, sussurra um de nós, sem que ninguém o oiça.

Vera desata o cabelo. O cabelo escorre pelo tronco de Raquel, o sexo no meio do vermelho dos lábios.
Alguém de repente levanta-se, corre sedento a beber água, aos golos, como se a houvesse pela primeira vez, regressa e senta-se no sofá, intoxicado pelo fumo, preso às imagens interditas.
Não se ouve qualquer música, é um trabalho sério. Ouvem-se só, de quando em quando, pequenos gritos, palavras fracas, frases por terminar, sobre as respirações ofegantes. Um corpo a corpo de mulheres, meninas.

Eu fico sem saber de nada, de nadinha.
Quem comanda?


A mão encontra o sexo que encontra a boca e tudo se desfaz para se refazer numa exaltação de abandono. Os corpos são coisas sem vontade, desamparadas. A boca encontra a boca, desfaz-se nela em beijos fundos. A boca encontra o seio, engole-o. O sexo avança pela carne, a mão de Vera indicando o caminho.
Não há palavras.
Quem diria. É preciso uma ordem mínima. Raquel segura Vera por detrás que se oferece como um fruto. Os movimentos repetem o prazer que só por si anseia, por vezes mais agudo, quase dor, que se escapa do interior para o exterior dos corpos. Os corpos vindo-se reviram-se para desvendar mais um segredo.

Nunca tive prazer assim tão fortemente confessa uma voz comovida.


Há lágrimas. As mulheres são infinitas.
O macho tem de dosear o sémen, a corrente, o líquido de que é feito.
A sofreguidão, no entanto, aumenta. Vale tudo o que der mais prazer ao outro, que o prazer vem do outro, num explendoroso reflexo.

A tua face desfeita, como é linda. Os teus cabelos são sedas onde me perco. O teu sexo pulsa por cima do meu coração aflito.

O sexo é o caos primordial antes da separação dos corpos, que liga a morte à vida. As coisas são todas as coisas a que se possa lançar a mão, roubar o fruto, sorver a corrente de suor que se escapa do interior dos corpos virados do avesso. Só a exaustão tranquiliza, pode parar o movimento que por si não se esgota, são só suspiros agarrados uns a outros num sufoco, numa asfixia.

Quem sabe quem irá terminar o que ninguém começou?

E, de repente, um pano de seda vermelho escuro cai esvoaçando sobre os corpos confundidos, tapando um braço, uma mão, uns cabelos negros, protegendo o sono dos audazes e o tempo, devagar aos soluços, volta a tomar conta de tudo.

Pedro Paixão

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Infinitamente Metafórico

Nada é, tudo se outra.

Fernando Pessoa

sábado, 4 de julho de 2009

Instintiva|mente

Estou nervoso, é a primeira vez que a revejo.
Sem que venha a propósito, conto segredos, faço confidências de que logo me arrependo.
A distância física é também uma distância, um afastamento interior. Falo de mim como quem fala de uma outra pessoa que julga conhecer bem, ou pelo menos, isso presume.
Não creio que G. tenha acreditado ou mesmo entendido o que lhe quis dizer. Por isso, a partir de certa altura, os segredos transformam-se em pequenas mentiras, em efabulações. Fizemos o que é mais habitual duas pessoas fazerem, preenchemos todo o tempo com palavras, enquanto os corpos de dois animais, frente a frente, se alimentavam.

Pedro Paixão

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Vive o instante que passa.


Vive-o intensamente até à última
gota de sangue. É um instante
banal, nada há nele que o distinga
de mil outros instantes vividos.
E no entanto ele é o único por ser
irrepetível e isso o distingue
de qualquer outro. Porque nunca
mais ele será o mesmo nem tu que o
estás vivendo. Absorve-o todo
em ti, impregna-te dele e que ele
não seja pois em vão no dar-se-te
todo a ti. Olha o sol difícil
entre as nuvens, respira à
profundidade de ti, ouve o vento.
Escuta as vozes longínquas de
crianças, o ruído de um motor que
passa na estrada, o silêncio que
isso envolve e que fica.

E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és.

Vergílio Ferreira

sábado, 20 de junho de 2009

Profunda Maresia

dançamos à roda dum mastro,
saia em papel de seda bordada com búzios...
uma quadra flutua pela noite de nossos cabelos
rodopias,
e os teus amores são relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas breves,
junco molhado e o mar enche-se novamente de pássaros,
embarcações semelhantes a beijos que nos percorrem de alegria

Al Berto

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Despeito

Hoje a obsessão foi mais forte.
Escrever-te.
E um dia perguntei-te se tinhas guardado estas cartas.
Tu olhaste-me com o teu sorriso breve e repreensivo.

Rasguei-as,
naturalmente, disseste,
e porque havia de guardá-las?

Vergílio Ferreira

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Disseram-me

que não se pode quebrar o coração a alguém que já o tem partido.
E eu pensei
Pode.
Podemos sempre partir os bocadinhos do coração em bocadinhos ainda mais pequenos, amachucar ainda mais o que nos resta, como se nos tirassem o último sopro de vida.
Patrícia Reis

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Fila De Espera

Espera-se para tudo, somos feitos não de carne,
De paciência, se calhar já nascemos com um papelinho na mão.
Retire aqui o seu bilhete e aguarde a sua vez.
Aguardo a minha vez. Desde que me conheço que aguardo a minha vez.

António Lobo Antunes

ilegível

O teu corpo, luz sobre a cama.
A escuridão chegará de um momento para o outro e tu perdes-te, minha amada, sobre os lençóis num sono que enche a noite. Enroscada como um animal perigoso que ao menor toque atacaria, a luz dos olhos fechada sob as pálpebras docemente descidas. Ainda se vê, no escuro, o seu fulgor. Não sei onde está aquela que eu persigo, por onde se passeia, erguida e nítida, quais os desejos de que se alimenta e os prazeres de que se constrói. Não sei que paisagens a acolhem, que língua humana fala. O teu corpo despido, estendido a meu lado, preste o ataque.
Tão frágil que me impede de lhe tocar.
Um imenso desejo.
A noite toma-te sem fazer perguntas.

Pedro Paixão

Sublinhado

Tenho um mau presságio.
Só escreve quem não está a bem com a vida, quem está desde sempre descentrado e busca o irremediável equilíbrio nas palavras.

Pedro Paixão

terça-feira, 9 de junho de 2009

Mais Um (Dia)

Os dias longos, as noites no meio do mar.
Espero o porto de chegada, as virtudes restituídas, o espírito enfim reconciliado com o mundo.
E desembarco, há uma qualquer experiência surpreendente, caminho para o conhecimento.
Consigo agarrar essa meada ainda irreconhecível: a maneira como tudo se enreda em tudo.
Desabituei-me dos milagres.
Sabe-se como é: quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações.
Trata-se de mais um dia em que me vou chatear, aturar os meus semelhantes, a filha-de-putice teológico-emocional de um Deus que, ainda por cima, não existe.
Posso especular sobre a revolução, evidentemente.
Que revolução?
A revolução, claro.
Pois é: a minha revolução não dá um passo.

Herberto Helder

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Os Meus Quartos Em Metades De Outros

Esta será, talvez, a forma mais prática e mais simples de nos conseguirmos prolongar, fazendo com que a nossa imagem permaneça viva na cabeça dos outros.
Perdemos, nisto, uma parte de nós próprios; sabemos que nos falta qualquer coisa, e que essa qualquer coisa que não conseguimos definir, e que é sem dúvida um pedaço da nossa alma, foi retalhada do nosso ser por esse olhar que nos fixou, e levou consigo a imagem em que a nossa essência encontrara a sua mais completa expressão, deixando-nos um vazio que não conseguimos definir, porque para isso precisaríamos das palavras de quem nos roubou a nós próprios.

Nuno Júdice

Capítulos

Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão.
Era o momento de recuar.
Mas eu não recuo.
Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída.
E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!...
Há na minha vida um bem lamentável episódio que só se explica assim.
Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável.
Mas não era, não era.
É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim.
Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado.
Eu sou daqueles que vão até ao fim.
Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa.
Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo.
E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim.
Mas ninguém as compreende.
Ou tão raros...

Mário de Sá-Carneiro, in "Cartas a Fernando Pessoa

sábado, 6 de junho de 2009

As Nossas Respostas

Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.
Nuno Júdice

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A minha táctica

é olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és

A minha táctica
é falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

A minha táctica
é ficar na tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti

A minha táctica
é ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois
não haja cortinas
nem abismos

A minha estratégia
é em outras palavras
mais profunda e mais
simples

A minha estratégia
é que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.

Mario Benedetti

terça-feira, 2 de junho de 2009

A nossa existência

não é mais do que um
curto-circuito de luz
entre duas eterniddades
de obscuridade.

Vladimir Nabokov

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Noite de Insónia (4:12 am)

saiu para a rua.
embrenhou-se na espessura da noite,
amou e traiu,
seduziu e deixou-se seduzir,
morreu um pouco todas as manhãs
e nunca mais regressou ao que tinha sido.

Al Berto

Noite de Insónia (4:09 am)

Nas grandes horas em que a insónia avulta
Como um novo universo doloroso,
E a mente é clara com um ser que insulta
O uso confuso com que o dia é ocioso,

Cismo, embebido em sombras de repouso
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta,
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Me farão nada, como frase estulta.

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.

Fernando Pessoa

Noite de Insónia (3:23 am)

umas vezes falavas-me dos rios
e densas cicatrizes
e o sangue
procedia

outras vezes velava-te uma lâmpada
de faias e de enigmas
e a sombra
repousava

outras vezes o barro
originava
uma erupção de insónia recidiva
no gume do incêndio onde jazias

nessas vezes a água do teu riso
abria nos meus pulsos uma rosa
e eu entontecia

Carlos Nogueira Fino

Noite de Insónia (2:59 am)

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais.E então, das duas uma : partem -se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.

No segundo caso, o homem que não dorme pensa:"o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim,deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo,esmagar o coração."

Carlos de Oliveira

Noite de Insónia (2:11 am)

As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.

É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder

Noite De Insónia (2:10 am)

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras,
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.
Álvaro de Campos

Noite De Insónia (1:40 am)

tento escrever um verso.
tenho vontade de sair por aí, vaguear pelas ruas, mas vou ficar aqui, fechado na casa sitiada pela noite, perdida algures onde a não posso sequer inventar.
meio deitado, imagino o mar ao fundo das ruas, os barcos como fantasmas adormecidos no areal, finjo que não posso mexer-me. escrevo ou desato a gritar, tanto faz

Al Berto

quarta-feira, 27 de maio de 2009

talvez

nunca tenha entendido a minha maneira
de amar ou
talvez nunca
tenha tido uma maneira de amar ou uma única
maneira de amar – talvez nunca
tenha sabido o amor de uma maneira – a forma
e a proporção
a geometria – mas estou certo que amei
sempre tarde demais ou num cedo incerto de
tanta impossibilidade de me encontrar amando
seja o que for
o amor.

Frederico Mira George

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Que estranho destino é o meu

que apenas me consente paixões ardentes e me faz esgotar em amores improváveis.
José Manuel Saraiva

Reticências (s)em Tempo


Sinto-me
como
se
tivesse
cegado
por
excesso
de olhar
o mundo.

Al Berto

Como Uma Dor

levanto-me e saio para a rua
caminho na chuva adocicada da manhã,
as pedras acendem-se por dentro,
reconhecem-me
uma voz líquida arrasta-se no interior dos meus passos,
ecoa pelos recantos ainda vivos do teu corpo

Al Berto

sábado, 16 de maio de 2009

Quando Nós...

Era o silêncio sobre a terra.
O mundo estava preparado.
No seu lugar, cada objecto esperava o início.
O sol esperava.
O mundo estava preparado e suspenso.
Nós, dentro dos homens, depois das nuvens, sabíamos como tudo ia acontecer.
O nosso olhar passava sobre os campos, rente à terra, atravessava os ramos das árvores e o mês de Julho.
No silêncio, distinguíamos as palavras que, durante um momento futuro, se iriam erguer como uma construção de cinza.
Nos objectos, distinguíamos os gestos que, a partir de um momento futuro, iriam alterar a sua ordem.
Era o silêncio.
A terra esperava passos.
O sol esperava olhares para iluminar.
O tempo, Julho, existia na distância entre os objectos suspensos.
Nós assistíamos à espera do mundo.
A terra sabia.
O sol sabia.
O tempo sabia.
Nós sabíamos.
Os homens não sabiam.
Ele e ela não sabiam.


José Luís Peixoto

sábado, 9 de maio de 2009

... e havia uma força cega

No poema:
Era um verbo de sangue para o silêncio arder.

Daniel Faria

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Desvario

Passar-te estas palavras assentes
na promessa de nada comunicarem.
Aceitas tão pesado desafio? Voz
sem uma pessoa dentro: numa cidade
grande de tantas heranças, tão poucos
amigos, que mais havia a esperar?
Apenas a derradeira ousadia
do corpo, a pausa de pensar um outro
desejo. Não é preciso inventar
a distância, cada um para seu lado
a ir ter com as coisas que conhecemos
há tanto tempo. Dou contigo na única
atenção, ficaria aqui muitas horas
só a olhar a calma que pões em tudo.
E tudo foi breve, as semanas
já correm sobre o nosso esquecimento.
Dizer quem és vai ficar sempre
adiado, procuro o doído desejo
da repetição.

Helder Moura Pereira

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Aqui

Nem os dias longos me separam da tua imagem.
... Então, desejo
o silêncio para que dele possas renascer...

Nuno Júdice

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A Invenção Do Amor ou A Pandemia

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios
de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza
de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia
iminente a captura
A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos *

Daniel Filipe
__________________________________________________________ *Afinal a fuga fomos nós...
E.S.

Apenas porque...

Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
é justo que assim seja. Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar- me um lugar qualquer mais adiante,
despir-te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.
António Franco Alexandre

domingo, 26 de abril de 2009

Prenúncio

De ser o som do amor tão enleado
em cristalinas veias,
em palavras suaves, em recantos
que são gestos bem vivos e são letras
de irradiante lume,
havia este destino que era um lábio
a arder na vastidão de descobrir
o lugar onde ardia este esperar-te.

João Rui de Sousa

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Nós de nós

De esperas construímos o amor intenso e súbito
que encheu as tuas mãos de sol e a tua boca de beijos.
Em estranhos desencontros nos amamos.
Havia o rio mas sempre ficávamos na margem.
Eu tocava o teu peito e os teus olhos e, nas minhas mãos,
a tarde projectava as suas grandes sombras
enquanto as gaivotas disputavam sobre a água
talvez um peixe inquieto, algo que nunca pudemos ver.
As nossas bocas procuravam-se sempre, ávidas e macias
E por muito tempo permaneciam assim, unidas,
Machucando-se, torturando as nossas línguas quase enlouquecidas.
Depois olhávamo-nos nos olhos
No mais profundo silêncio. E, sem palavras,
Partíamos com as mãos docemente amarradas e os corações estoirando uma alegria breve
Quando a noite descia apaixonada
Como o longo beijo da nossas despedida.

Joaquim Pessoa

terça-feira, 14 de abril de 2009

Sem Título e Bastante Breve

Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e
com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor....

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,
não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, à beira mar...

dizem que ao possuir tudo isto
poderia ter sido um homem feliz, que tem por defeito
interrogar-se acerca da melancolia das mãos....
...esta memória lâmina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
....que sei eu sobre as tempestades do sangue?
E da água?
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão
Al Berto

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Ás vezes

ouço passar o vento;
e só de ouvir o vento passar,
vale a pena ter nascido.

Fernando Pessoa

O destino

plantou-me aqui
e arrancou-me daqui.
E nunca mais as raízes
me seguraram bem em nenhuma terra.

Miguel Torga

sexta-feira, 6 de março de 2009

(Im)Possibilidade

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu.

Mia Couto

terça-feira, 3 de março de 2009

Acerto Da Hora



Desejava morrer
num lugar público,




sentado num banco de jardim e
esperar a morte ao amanhecer.




Al Berto

domingo, 1 de março de 2009

Permuta

Trocaria a memória de todos os beijos que me deste por um único beijo teu.
E trocaria até esse beijo pela suspeita de uma saudade tua, de um único beijo que te dei.

Miguel Esteves Cardoso

Sorrow

Despede-te de mim, bate devagar à porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento,
abandono. Despede-te de mim como se a vida
recomeçasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.
Tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objectos fixos, em repouso,
os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade.

Francisco José Viegas

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Balanço (-te)

Na sua inocência,
........................as coisas por nós perdidas




.............................n
......d...................................ç............................m
...............a..........................................a




Mário Rui de Oliveira

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Hypócrísis

O riso, o mal, o orgulho, a loucura, hão de surgir, alternadamente, entre a sensibilidade e o amor pela justiça e servirão de exemplo à estupefacção humana: cada um se reconhecerá aí, não tal como deveria ser, mas tal como é.
Isidore Ducasse



__________________________________________________________
hipocrisia: do Gr. hypocrisia, forma poética de hypócrísis, desempenho de um papel no teatro, dissimulação. s. f., impostura, fingimento; manifestação de virtudes ou sentimentos que realmente se não tem.
(fonte: Priberam)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

|Entre|tanto|

.
.
.
Entre

...........nós

......................e

............................as

.................................palavras,

.................................................. o nosso dever falar.





Entre

...........nós

.....................e

...........................as

.................................palavras,

.................................................o nosso querer falar.


Mario Cesariny

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

(Des)Encontro


Uma mão fechada, em frente a mim, dormitava sobre a
mesa. Voltou-se subitamente e abriu os dedos como se me
pedisse para lhe ler a palma.
Mas, enquanto lhe observava as linhas saltou subitamente
e deu-me uma bofetada.



Comecei a chorar...



E essa mesma mão levantou-se e limpou-me as lágrimas do rosto...


Russell Edson

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Eu Sei

... existes.



Por isso os deuses não existem, a solidão não existe.



Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te...



numa outra maneira de habitares em
todas as palavras do meu canto.

Joaquim Pessoa

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Opacidade

No centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar.
E sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado, tem a dimensão de um túmulo, e todos os teus gestos são uma sinalização em direcção à morte - embora seja sempre absurdo morrer. Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso. Possuo para sempre tudo o que perdi. E uma abelha pousa no azul do lí­rio, e no cardo que sobreviveu à geada. Penso em ti. Bebo, fumo, mantenho-me atento, absorto - aqui sentado, junto à janela fechada. Ouço-te ciciar amo-te pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte acaba o corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo-te baixinho:

"Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge."


Al Berto

sábado, 10 de janeiro de 2009

Tu e Eu

"Paga-me um café e conto-te a minha vida"

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu ,não,nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas ,acreditas?
E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

"pago-te um café se me contares o teu amor"

José Tolentino Mendonça