sexta-feira, 31 de julho de 2009

Quimera De Mim

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.
Maria Teresa Horta

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Só (Contigo)

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo,
e desisti.

Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos
a loucura de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.

Só por dentro de ti
a noite escuta o que me sai, sem voz,
do coração.

David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Preludio

Os espelhos ainda nos devolvem a candura do que somos,
mas
também anunciam a cinza que sepultara os corpos,
algures,
num esquecimento e
numa dor obscura de nós próprios.

Temos de aprender a subjugar o destino
à nossa vontade.
Ainda é possível mergulhar nos espelhos e
roubar-lhes os vestígios felizes de nossos rostos.

Ainda é possível apagar as dolorosas manchas da memória e
recuperarmos o rosto da alegria que nos pertenceu.

É esse o nosso rosto, mesmo que seja morto.

Regressa.
Regressa ao escorrer dos dedos enrolados no sexo,
ao riso matinal dos corpos saciados,
às nocturnas conversas das esplanadas,
aos jogos de sedução,
aos engates,
ao murmúrio das vozes,
à ofegante trepidação da manhã,
regressa... regressa.

Porque as palavras não te substituem e
estão cheias de pústulas no coração das sílabas.

Regressa e
oferece-te à preguiça triste de quem continua aqui,
vivo,
sorvendo a espiral da sua própria ausência.

Regressa, peço-te, mesmo antes de partires.

Regressa à voracidade do desejo, e
à incendiada paixão dos nocturnos tigres.

Al Berto

domingo, 26 de julho de 2009

De mim

Sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir.
vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável,
para que a morte nada encontre em mim quando vier.
Al Berto

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Ou Isto Ou Aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão ,
Quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e não guardo o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Cecília Meireles

sábado, 11 de julho de 2009

Asfixia

Não se sabe como acontece, nem quando.
Digo o desejo, que tudo arrasta, que tudo envolve num aperto que asfixia. A vontade de anular todo o espaço entre as coisas no ardor dos corpos, no misturar das línguas.
O sexo é o caos, o precipício para onde nos lançamos entrelaçados.
O desejo atinge a cabeça no centro do sexo. O seios aprumam-se ao menor toque suave dos dedos. A cabeça do sexo erguida, Raquel fica estátua, medusa petrificada onde só os olhos muito azuis brilham. As bocas abocanham o sexo escorregadio, agarram-se ás reentrâncias, á pele por debaixo de tudo.

Nada mais quero do mundo senão a tua flor coberta de orvalho, sussurra um de nós, sem que ninguém o oiça.

Vera desata o cabelo. O cabelo escorre pelo tronco de Raquel, o sexo no meio do vermelho dos lábios.
Alguém de repente levanta-se, corre sedento a beber água, aos golos, como se a houvesse pela primeira vez, regressa e senta-se no sofá, intoxicado pelo fumo, preso às imagens interditas.
Não se ouve qualquer música, é um trabalho sério. Ouvem-se só, de quando em quando, pequenos gritos, palavras fracas, frases por terminar, sobre as respirações ofegantes. Um corpo a corpo de mulheres, meninas.

Eu fico sem saber de nada, de nadinha.
Quem comanda?


A mão encontra o sexo que encontra a boca e tudo se desfaz para se refazer numa exaltação de abandono. Os corpos são coisas sem vontade, desamparadas. A boca encontra a boca, desfaz-se nela em beijos fundos. A boca encontra o seio, engole-o. O sexo avança pela carne, a mão de Vera indicando o caminho.
Não há palavras.
Quem diria. É preciso uma ordem mínima. Raquel segura Vera por detrás que se oferece como um fruto. Os movimentos repetem o prazer que só por si anseia, por vezes mais agudo, quase dor, que se escapa do interior para o exterior dos corpos. Os corpos vindo-se reviram-se para desvendar mais um segredo.

Nunca tive prazer assim tão fortemente confessa uma voz comovida.


Há lágrimas. As mulheres são infinitas.
O macho tem de dosear o sémen, a corrente, o líquido de que é feito.
A sofreguidão, no entanto, aumenta. Vale tudo o que der mais prazer ao outro, que o prazer vem do outro, num explendoroso reflexo.

A tua face desfeita, como é linda. Os teus cabelos são sedas onde me perco. O teu sexo pulsa por cima do meu coração aflito.

O sexo é o caos primordial antes da separação dos corpos, que liga a morte à vida. As coisas são todas as coisas a que se possa lançar a mão, roubar o fruto, sorver a corrente de suor que se escapa do interior dos corpos virados do avesso. Só a exaustão tranquiliza, pode parar o movimento que por si não se esgota, são só suspiros agarrados uns a outros num sufoco, numa asfixia.

Quem sabe quem irá terminar o que ninguém começou?

E, de repente, um pano de seda vermelho escuro cai esvoaçando sobre os corpos confundidos, tapando um braço, uma mão, uns cabelos negros, protegendo o sono dos audazes e o tempo, devagar aos soluços, volta a tomar conta de tudo.

Pedro Paixão

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Infinitamente Metafórico

Nada é, tudo se outra.

Fernando Pessoa

sábado, 4 de julho de 2009

Instintiva|mente

Estou nervoso, é a primeira vez que a revejo.
Sem que venha a propósito, conto segredos, faço confidências de que logo me arrependo.
A distância física é também uma distância, um afastamento interior. Falo de mim como quem fala de uma outra pessoa que julga conhecer bem, ou pelo menos, isso presume.
Não creio que G. tenha acreditado ou mesmo entendido o que lhe quis dizer. Por isso, a partir de certa altura, os segredos transformam-se em pequenas mentiras, em efabulações. Fizemos o que é mais habitual duas pessoas fazerem, preenchemos todo o tempo com palavras, enquanto os corpos de dois animais, frente a frente, se alimentavam.

Pedro Paixão