segunda-feira, 8 de junho de 2009

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Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão.
Era o momento de recuar.
Mas eu não recuo.
Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída.
E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!...
Há na minha vida um bem lamentável episódio que só se explica assim.
Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável.
Mas não era, não era.
É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim.
Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado.
Eu sou daqueles que vão até ao fim.
Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa.
Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo.
E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim.
Mas ninguém as compreende.
Ou tão raros...

Mário de Sá-Carneiro, in "Cartas a Fernando Pessoa

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